Conheça a história do Beco do Batman
Da viela sem nome ao hall of fame do graffiti, referências ao homem-morcego sempre fizeram parte do Beco do Batman
Por muitas décadas, a viela sem nome, ligando a rua Harmonia à Medeiros de Albuquerque, foi um local ermo e escuro, iluminada apenas pela lanterna dos poucos carros de moradores ou passantes esporádicos.
Para a molecada da região, já era, nas brincadeiras, uma referência à batcaverna. Para alguns vizinhos mais antigos, a região também não estava muito longe de parecer uma Gotham City. Isso porque nas décadas de 1950 e 1960, a Vila Madalena era uma região distante do centro e o Beco do Batman, um pedaço ainda mais periférico, com casas simples e esparsas, em meio ao mato.
Nos idos de 1970, alguns novos moradores foram chegando e os filhos dos antigos, nascendo. Na época, o local começou a ser conhecido por Imporbox, em referência a uma serralheria, produtora de boxes de acrílico com alumínio.
Localizada na esquina da rua Gonçalo Afonso com a Medeiros de Albuquerque, a empresa logo se tornou o point do vôlei da moçada. Uma grade do prédio se tornou rapidamente a rede de vôlei da turma. “Quatro ficavam para dentro do pátio e quatro para fora”, explica Flávio Pires, morador nascido no Beco. As famílias de seu avô paterno e do bisavô materno foram as primeiras a mudar para a localidade. “Sou morador raiz”, define.
Beco do futebol
Por volta de 1975, quando Pires tinha 10 anos, o atual beco era chamado de “larguinho”, onde a moçada se encontrava durante o dia para jogar bola. “A gente colocava dois tijolos de cada lado e fazia os gols”, descreve o morador. “Jogávamos descalços no paralelepípedo e quantas vezes não perdemos um pedaço do dedo, chutando o chão”, lembra o primo de Pires, Marcelo Jacaré.
Ali, no larguinho, também eram comemoradas as copas do mundo de futebol, com pinturas no chão, muros e bandeirinhas por todo o lado. “Sem querer, começamos a cultura de pintar no Beco”, diz Pires.
À noite, o pessoal se deslocava para o murão da Medeiros, onde havia luz. Lá também era a escolha quando o jogo de futebol ficava maior.
Além de vôlei e futebol, no sábado, os jovens passavam horas lavando os possantes para depois desfilar pelo bairro. Também rolavam paqueras, conversas regadas à música no murão, dar um pulinho no larguinho escuro para fumar escondido… Era tudo muito simples e feliz, inclusive as enchentes viravam brincadeira até que a diversão virou tragédia, com a morte de quatro dos meninos da turma.
As enchentes sempre foram comuns na região, a ponto de a meninada brincar de surf com prancha de isopor na enxurrada. O larguinho, sempre enchia, e não raro, crateras apareciam perto do murão, na Medeiros de Albuquerque, devido ao córrego do rio Verde, que como muitos cursos d’água correm por baixo das vias públicas em São Paulo, escondidos e canalizados.
Animados com o buraco, os jovens entravam na cratera, com vela e pizza nas mãos e caminhavam pelo interior das galerias pluviais, com água na altura da canela, passando por baixo do larguinho, ao lado do cemitério, em frente ao Beco do Aprendiz, seguindo até a rua Fradique Coutinho, de onde a passagem subterrânea vai para a av. Rebouças até desembocar no Rio Pinheiros. Tudo por baixo.
Em um domingo, Pires e o primo resolveram almoçar antes de ir com os amigos para as galerias. Os meninos, em geral com 10 anos, se anteciparam e entraram em uma cratera aberta com as chuvas fortes de dias anteriores. Infelizmente, a turma foi surpreendida por uma tromba d´água que começou em um bairro acima. Todos foram levados pela forte enxurrada e não se salvaram. “Foi uma tragédia noticiada em toda cidade”, lamenta Pires, um dos sobreviventes, porque foi almoçar primeiro na casa da avó.
Do larguinho a polo artístico
Os anos passaram e estudantes da USP, frequentadores de bares como o Sujinho, foram chegando ao bairro, alugando casas e tornando o local um polo artístico e cultural. Nas décadas de 1980 e 1990, a Vila Madalena também chamou atenção de artistas como Zé Carratu e seu grupo, o Tupinaodá, o primeiro coletivo de arte urbana do Brasil.
Alex Vallauri, o pioneiro do graffiti no Brasil, e os integrantes do Tupinaodá foram os primeiros a grafitar o beco, na transição do larguinho de futebol, para o “hall of fame” do graffiti em São Paulo. “Éramos artistas de rua, não grafiteiros, esse nome não existia ainda”, aponta Carratu. “A gente pintava a Vila Madalena inteira.”
Ainda não existia o famoso Batman, feito em estêncil, localizado em uma parede à direita da viela, vindo da rua Harmonia, em uma inclinação, antes de chegar ao larguinho, descreve Carratu, por telefone.
Um dos desenhos do Tupinaodá, no beco, estampou o álbum “Na calada da noite”, do Barão Vermelho, lançado em 1990. Antes do Batman, uma imagem do Spirit, dos quadrinhos, também foi feito por lá por Júlio Barreto, recorda-se Carratu.
O samba no Beco do Batman
Muitos moradores atribuem o crescimento do Beco do Batman como polo cultural à criação da Escola de Samba Pérola Negra (Grêmio Recreativo Social Cultural Escola de Samba Pérola Negra).
Nascida em 1973, da união do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos de Vila Madalena com o Bloco Boca das Bruxas, a escola fez seu primeiro desfile no ano seguinte e desde então é considerada uma das escolas de samba mais simpáticas de São Paulo. Logo em sua primeira participação, a escola já sagrou-se campeã do grupo 3.
O nome surgiu em alusão ao fato de as pérolas negras serem raras. A cada 100 pérolas produzidas na natureza, 1 é negra. Do mesmo modo, para os fundadores, a Escola de Samba Pérola Negra é a joia rara do samba.
A escola fica a poucos metros do Beco do Batman, na rua Girassol.
Batman, o nobre desconhecido
Sobre o desenho do Batman, propriamente dito, surgido perto do fim da década de 1980, pós-Carratu, Tupinaodá e Vallauri, o autor é incerto, quase como uma lenda urbana. Carratu cita dois garotos de São Caetano do Sul, há quem cite um cenógrafo que prefere não falar no assunto, além de outros grafiteiros.
A figura, surgida da noite para o dia no local, assinalou a transição natural do pedacinho de bairro simples para galeria de arte urbana a céu aberto. “A virada foi natural”, considera Pires, com a chegada de estudantes e o interesse de artistas e formadores de opinião pela Vila Madalena.
Ícone do graffiti em São Paulo
Nas décadas de 1990 e 2000, os graffitis foram cada vez mais tomando conta do agora Beco do Batman, chamando atenção de toda a cidade e levando o local a ser um dos principais polos turísticos da cidade.
Em 2015, a viela foi fechada para carros e em 2016 ganhou iluminação noturna.
Enivo tem graffitis desde 2001 no Beco e o considera o “hall of fame” da arte urbana paulistana. Ele atribui à “velha guarda” de grafiteiros, a “geração psicodélica”, de grandes artistas, com obras abstratas, coloridas, chamativas, com integração das pessoas na arte, mais bem elaboradas, à efetivação do Beco como ponto turístico da cidade. “Eu vinha do Grajaú para ver ou buscar espaço para pintar no Beco. Estar ali tem uma simbologia forte, todo mundo quer estar naqueles muros”, avalia.
Atualmente, um grupo de artistas cuida dos muros, mudando constantemente os trabalhos e criando um Beco sempre novo para os visitantes da região. Um acordo entre os grafiteiros garante que só o próprio artista pode mudar sua obra.
Luto no Beco do Batman
Mudando totalmente o ar colorido e artístico do Beco do homem-morcego, no dia 28 de novembro de 2020, a região amanheceu de luto e as obras foram cobertas com tinta preta, em total repúdio à morte violenta do artista e produtor cultural Wellington Copido Benfati, de 40 anos, o Nego Vila Madalena.
Renascimento do Beco do Batman
Aproximadamente dois meses depois, os artistas reuniram-se e renovaram, pela primeira vez, todos ao mesmo tempo, os graffitis, dando nova vida ao Beco do Batman, em 2021.
A viela não é mais escura, parecendo a famosa Batcaverna, e, agora, colorida e iluminada, dia e noite, recebe turistas de todo o Brasil e do exterior, apaixonados pela arte de rua, pelo graffiti, homenageado no Brasil, no dia da morte de seu pioneiro, o etíope radicado no país, Alex Vallauri.
O misterioso homem-morcego original, dos anos 1980, não existe mais. Mas há referências a ele por todo lado. Seja como hostess da ZIV Gallery, marca na janela de um sobrado ou em muros da região, Bruce Wayne vive, mesmo sem ser descoberta sua verdadeira identidade.
Em 2021, o quadrinista Pedro Cobiaco, em conjunto com a ZIV Gallery e a Warner trouxe de volta o Batman para o Beco, onde está até a próxima mudança, o próximo graffiti nascer.
Galeria de fotos com graffitis do Beco do Batman
(O beco tem dezenas de graffitis, abaixo, algumas obras e respectivas/os artistas)